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Os nudes de Brecheret (e os meus)

Autor do imponente Monumento às Bandeiras (1953), Victor Brecheret (1894 – 1955) é um dos principais nomes do modernismo nacional. As figuras femininas de traços estilizados e formas (quase) geométricas, características do estilo Art Déco, esculpidas na década de 1920 pelo artista ítalo-brasileiro, emanam força e leveza. Parte dessas esculturas de rostos e corpos femininos, em materiais como mármore e bronze e dimensões diversas, fizeram parte da mostra “O Feminino na Obra de Victor Brecheret”, que tive a felicidade de visitar em dezembro de dois mil e vinte e três no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba. Brecheret transforma, em obras como “Tocadora de Guitarra” (1927) e “Dançarina” (década de 1920), matéria-prima escura e estática em movimento, com curvas e inclinações delicadas e poucos detalhes





  • Os oitenta desenhos


O tratamento do rosto não tem importância, e sim os elementos sensuais do corpo; também os membros, como as mãos e os pés, não são apresentados. Em alguns desenhos, a figura feminina é associada a um elemento de interesse, como um pássaro nas mãos”.

(Trecho de um dos descritivos da mostra “O Feminino na Obra de Victor Brecheret”).


Além das esculturas, a exposição traz oitenta desenhos produzidos principalmente nas últimas décadas de vida de Brecheret. Nus frontais, de perfil ou três quartos aparentemente inacabados e, alguns deles, com marcações das áreas de sombreadas. Sozinhos, acompanhados ou entrelaçados, esses registros iniciais são particularmente emocionantes: na pureza dos rascunhos encontramos, com mais intensidade, o sentimento central da obra. Mais que isso, a incompletude e a descontinuidade, elementos com os quais costumo trabalhar, evocam liberdade e dinamismo, como bem define um dos textos da mostra: Como o artista não desenvolve as finalizações - pés, mãos e cabeças -, algumas imagens parecem sair da folha de papel, direcionando-se para cima ou para os lados.


Croquis de Victor Brecheret

Entrar em contato com os nus de Brecheret enquanto rabiscava os meus foi uma experiência singular. Passar algum tempo trabalhando somente com traços e poucos elementos gerava, naquele momento, questionamentos internos sobre a força da mensagem que buscava. Os croquis despretensiosos de Brecheret espalhados pelo papel marfim, me conectaram de maneira especial com a obra do artista e com meus próprios desenhos. Mais que isso, reacenderam a consciência de que poucas coisas são tão potentes quanto as linhas essenciais e os rascunhos. Essa consciência, aliás, foi o que impulsionou a mudança de rota, o desejo de seguir o caminho oposto àquele que havia determinado com o objetivo de lapidar meu trabalho artístico.


Se antes havia decidido avançar desenvolvendo artes mais complexas, unindo os elementos mais representativos da minha identidade como artista e aprimorando a técnica com base em mil e uma referências, passeando pelos corredores da mostra “O Feminino na Obra de Victor Brecheret” não tive dúvidas sobre voltar atrás. Separar as formas e olhar para cada uma delas sob um fundo branco, sabendo que não necessariamente devo combiná-las ou preenchê-las, deu início e fim às primeiras artes dessa nova fase: “Nude I” (2024) e “Nude II” (2024).


  • Entre início e fim, o meio


“Nude I” e “Nude II” são pequenos quadros carregados de significados. O contorno preto, só ele, foi o ponto de partida desses trabalhos. Depois de um bom tempo observando os estudos para essas pinturas, figuras humanas despidas de tudo sobre o papel branco, elas foram sobrepostas ao borrão de tinta sem forma que também nasceu independente. A tinta que veste as figuras relaciona-se de muitas formas ao momento artístico que vivo: a aceitação dessas manchas imperfeitas é um lembrete pessoal necessário para criar com mais liberdade, me desprendendo aos poucos (e sempre) das linhas impecáveis da ilustração digital. Há agora a vontade de formas indefinidas, o desejo de honrar a beleza da imprecisão, daquilo que ficou torto ou não foi planejado, através da arte. Esses traços, intencionalmente falhos ou não, são uma crítica ao meu próprio desejo de perfeição, inviável e limitante.





Outra contribuição involuntária de Brecheret neste reinício, através de suas prévias cruas nas paredes do museu, foi o encorajamento para expor produções que minha autocrítica ainda vê como um ensaio, longe de um ideal exigente de “arte final”. Os nus do artista, definidos como “a materialização inicial da ideia”, emoldurados ao lado das esculturas, revela que o processo de construção da arte é também arte. Rememorando todas as minhas fases criativas, das primeiras telas ainda criança, passando pelos croquis de Moda até as ilustrações pós dois mil e vinte, emergem as inúmeras vezes em que senti estarem prontos desenhos “em desenvolvimento”. Não estava errada. Os estudos são parte de uma obra e as linhas guias do desenho (será que preciso apagá-las?) constituem elementos estéticos ricos em significado. Da mesma forma, as criações que nascem entre o desenho inicial de uma etapa e a pintura que, finalmente, sintetiza todo o percurso, são produções visuais importantes e, inquestionavelmente, parte do conjunto da obra.


  • Para conhecer Brecheret


O documentário Victor Brecheret, da TV Cultura, disponível no YouTube, é uma excelente produção audiovisual sobre a vida e obra do artista. O filme traz informações interessantes sobre o período de atuação do escultor e a Semana de Arte Moderna de 1922, e revela o intenso e longo trabalho de planejamento e execução do “Monumento às Bandeiras” (foram 35 anos!). Destaco ainda a menção aos movimentos artísticos da época e referências de Brecheret, que incluem as clássicas representações greco-romanas e a escultura religiosa da Idade Média. Entusiasta da arte clássica, evidencio constantemente sua importância para a formação e desenvolvimento artístico. Brecheret, que considerava a arte clássica “a base de sua própria modernidade”, eu e você, só acessamos com propriedade a “desconstrução” visual quando conhecemos o realismo e compreendemos as primeiras construções artísticas. Novamente, o valor inestimável daquilo que antecede.


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