
Ano passado eu morri,
Mas esse ano (eu não morro) eu morro de novo
Belchior, peço licença
Para morrer todo ano
Deixar de ser para nascer de novo
Descolorir, dissolver, decompor
Virar pedaços, poeira, nada
Voltar
Viver como se outra
Até a última sorte
Morrer
Até a última morte
Todo Ano (2025)
Texto origem do projeto Tempus Fugit
"No fundo, na eternidade, as águas correm ao contrário, disso sabem os peixes, que nadam contra a correnteza - a alma também; na superfície a gente nasce nenezinho, tempus fugit e a gente fica adulto, tempus fugit e a gente fica velho, tempus fugit e a gente morre. Nas funduras, onde mora a eternidade, é ao contrário. Primeiro é a velhice. Aí tempus fugit, a gente vira menino. Deus começa sempre pelo fim. Nas Escrituras Sagradas o dia começa com a tarde e termina com a manhã. Está escrito no poema da Criação: "E foi a tarde e a manhã do primeiro dia..." O sol se põe, mais um dia se inicia. O fim é o lugar do começo".
Rubem Alves
T E M P U S F U G I T
é um projeto artístico sobre o tempo e morte, literal e simbólica. As primeiras ideias começaram a ganhar forma em dois mil e vinte e quatro, no entanto, o interesse de Ivy Lemes pelo tema é antigo. Depois de escolher a morte como linha guia para esta série de pinturas, a artista identificou inúmeros textos e croquis a respeito da passagem do tempo e da finitude em velhos cadernos.
As pesquisas se iniciaram com o fim. O fim da pureza e da perfeição técnica, o fim da restrição com relação ao suporte e aos materiais e o fim do excesso de autocrítica.
Apesar das diversas mortes em vida, Ivy Lemes manteve respirando sua afinidade nata com as representações visuais, e os conceitos e elementos mais marcantes em seus desenhos sobrevivem em Tempus Fugit. Das cinzas de sua carreira na Moda, resgatou roupas, tecidos e materiais.
Tal qual a vida, o tempo e o fim de Tempus Fugit é incerto...

O P R O J E T O
Palavras, processos e pinturas de Tempus Fugit.
Ivy Lemes
T E M P O F E M I N I N O
Sobre "Ampulheta substantivo feminino" (2025) e "Vence hoje" (2025)
Balzac escreveu, na obra "A mulher de trinta anos" (1829 - 1842):
"A fisionomia das mulheres só começa aos trinta anos. Até essa idade, o pintor só encontra em seus rostos o róseo e o branco, sorrisos e expressões que repetem um mesmo pensamento, pensamento de juventude e amor, pensamento uniforme e sem profundidade; mas, na velhice, tudo na mulher fala, as paixões incrustaram-se em seu rosto; foi amante, esposa, mãe; as expressões mais violentas de alegria e da dor acabaram maquiando, torturando seus traços, para ali se demarcar em mil rugas, todas com uma linguagem; e um rosto de mulher torna-se sublime de horror, belo de melancolia, ou magnífico de calma; se for permitido prosseguir essa metáfora estranha, o lago seco revela então os vestígios de todas as torrentes que o produziram; um rosto de mulher idosa não pertence então mais à sociedade, que, frívola, fica assustada por nele avistar a destruição de todas as ideias de elegância às quais está habituada, nem aos artistas vulgares, que ali nada descobrem; mas, para os verdadeiros poetas, para aqueles que têm o sentimento de uma bela independência de todas as convenções sobre as quais se baseiam tantos preconceitos, ele constitui arte e beleza".
Estas são artes para honrar "as expressões mais violentas de alegria e dor" que torturaram nossos traços e estão impressas em nossa pele.
Para fazermos as pazes com nosso tempo, com as marcas do passado, com a integridade do agora. Para comemorarmos as linhas e os fios brancos, testemunhas de que temos o privilégio da vida, de que podemos presenciar a beleza das transformações em nossos corpos e mentes, únicos em cicatrizes e memórias.
Dedico "Ampulheta substantivo feminino" (2025) e 'Vence hoje" (2025) a todas as mulheres que, em algum momento, chegarem até elas.
Em especial à Gabriella que, mais que se identificar, é parte da construção destas pinturas.
Curitiba, março de vinte e cinco.
V E S T I R P A S S A D O E F U T U R O
Sobre "Memorial de mim" (2025)
Carregar o que vivemos é inevitável. No entanto, é possível vestir a própria história de diferentes formas.
Escolher a composição de cores, combinar com peças novas, recombinar com itens vintage, reinterpretar, descobrir novas formas de uso.
"Memorial de mim" (2025) é um autorretrato em roupa. Músicas, palavras, números, objeto e formas que me construíram e me compõem.
Quando me propus a iniciar uma pesquisa artística para falar sobre o tempo e a morte, algo neste sentido não poderia ficar de fora. Embora nem todos os acadêmicos concordem, aqui a arte não existe sem a íntima e indissociável relação comigo.
Com esta peça, caminho com o passado nas costas sem o peso de antes e miro no espelho a incerteza do amanhã em manchas sem forma: pode ser qualquer coisa.
Curitiba, março de vinte e cinco.
S O B R E T E L A
Liberdade para criar
Poucas decisões foram tão importantes quanto a de libertar minha arte dos suportes e materiais tradicionais.
Não existem palavras para descrever o que sinto ao ter nas mãos os tecidos, os fios e cordões, as bolinhas de resina e canutilhos. Menos ainda para nomear o que transborda quando combino esses objetos às telas e tintas.
No caos da minha mente e coração, há anos em busca de um caminho, as coisas começam a fazer sentido.
Curitiba, março de vinte e cinco.
O F I M E O C O M E Ç O
Sobre "Aqui Jaz" (2025) e "Pulso" (2025)
"Aqui jaz" (2025) é uma pintura simples sobre tecido parcialmente desintegrado. Essa pintura foi o ponto de partida para os atuais e futuros trabalhos, através dos quais falo sobre o tempo e a morte, literal e simbólica.
Começar com "Aqui jaz" coloca o fim como lugar do começo. Durante o processo, desintegrando o tecido, decidi guardar seus resíduos. Junto com cordões e outros fios, os restos mortais desse suporte foram integrados à arte em uma caixa de acrílico.
Tecidos e fios são elementos importantes na minha vida (e em algumas mortes). E foi a partir dessa primeira peça que decidi integrar de vez esses materiais ao meu fazer artístico.
O que ficou do desmembramento representado em "Aqui jaz", foi simbolicamente transportado para as artes que desenvolvi a seguir, fazendo ressuscitar o que parecia morto.
Libertar minha arte dos suportes e materiais tradicionais foi uma decisão importante que me permitiu perfurar a superfície, perceber e expor o sangue que ainda corre através do alfinete "Pulso", a segunda arte da série.
Curitiba, fevereiro de vinte e cinco.